UMA JORNADA NA ESCURIDÃO

Uma Jornada na Escuridão
 Tarsis Tindarsam
"De fato este conto é uma jornada para o leitor", foi o que disse um leitor e crítico amigo meu. Não sei se realmente ele adorou o conto ou reclamou da leitura longa. Nunca se sabe o que um crítico quer dizer realmente. Eu me inspirei nas novelas de cavalaria e em J. R. R. Tolkien, (autor da trilogia O Senhor dos Anéis). Se você não gosta de Tolkien, então é melhor nem começar a ler. Se nunca leu, pode ser um boa oportunidade de conhecer um pouco de mim e desse autor que inspira milhares de escritores de aventura e fantasia (não que eu chegue aos pés dele). 

     Dobrado em um pequeno baú, um pergaminho de couro jazia entre restos de lama seca. Trazia ideogramas que prenunciavam o caminho para um mistério.
    ― Son rôunãs, mo vôlhu omigo, rôunãs ― ruidou o mago enquanto mastigava um bocado de bolo, repuxando a barba alva e balançando os longos cabelos. Mas no cenho, a atenção enrugava a tez morena, cerrando os olhos cor de azeite. ― Acredito que seja uma forma rúnica muito antiga. Onde encontrou isso? ― perguntou, depois de ter engolido tudo.
    ― Decerto nada distante da antiga cabana, na floresta ― respondeu um homenzinho de cabelos assanhados, com uma expressão de ressaca e a voz esgoelada. ― Algo espetou minhas nádegas quando estive debaixo do salgueiro rugoso depois de bons goles de vinho. Era a aresta de um baú escondida entre raízes fétidas. Não esperei que chegasse o tempo de abri-lo, então, arrombei-o. Contudo, poderia ao menos ter encontrado algumas moedas de ouro, em vez de lama e um pergaminho velho.
    ― Observe o mapa. ― O mago apontou para o pergaminho. ― Talvez seja o caminho até um tesouro!
    Imediatamente a face do homenzinho se mostrou interessada, os olhos brilharam. O mago o encarou e perguntou, surpreso:
    ― Reueliuel, por obséquio! Um nobre como tu, precisas de mais ouro?
    ― Nunca é demais para um rei. Nunca, meu caro!
    O mago virou o pergaminho para baixo. Queria desvendá-lo sem pressa. Sem dar atenção à impaciência do rei, tomou lentamente seu chá de frutas vermelhas.
    ― Pois bem, Ranulfo. Esse pergaminho será teu, assim que traduzi-lo. Pensei que tu conhecias todos os tipos de runas. Um mago deve ter seus segredos, é claro. Ou não possuis tanta sabedoria quanto indica teu rosto? ― ironizou o rei Reueliuel, retirando-se com uma risada jocosa.

    Ao cair da madrugada, o mago ainda mantinha os olhos abertos, apostando na revelação do pergaminho.
    Não tinha interesses gananciosos para com o tesouro, se é que havia algum. Para ele, o faro da descoberta era o princípio de toda a sabedoria.
    No entanto, não conseguira desvendar nada ainda, mesmo depois de horas. Aquele tipo de linguagem rúnica era desconhecida para ele. Já frustrado e muito cansado, o mago esbravejou, atirando o pergaminho no chão:
    ― Que coisa estúpida! Que burrice a minha!
    Segundos depois, o mago franziu a testa.  O nariz comprido e afilado se retorceu. Ele inverteu o pergaminho contra a luz da vela, com o verso virado para cima.
    As runas começaram a surgir, pálidas, no verso do pergaminho onde supostamente não havia nada escrito.
    ― Uma mensagem secreta que surge à luz da cálida chama ― comentou o mago, aos sussurros, olhando ao redor, certificando-se de que ninguém estava por perto.
    Levantou-se e fechou a porta de seu salão de pedra. Voltou a olhar o pergaminho. Intrigou-se ao traduzir as primeiras runas:

    “Sei que o Mundo Sombrio é um lugar tortuoso e tão cheio de pavor que não fico surpreso ao ouvir suas lendas mergulhadas em sangue. A morte habita neste lugar.
    Sou a única testemunha viva da existência das negras Fendas de Etrom. Sou aquele que viu as densas brumas ocultarem criaturas cinzentas de hábitos assassinos. E sou o portador deste segredo a mais de meio século.
     Alguém, no entanto, me observa, seguindo-me todos os dias pela floresta, proveniente do castelo de Edgard, o rei do norte. Temo que tal pessoa domine grande bruxaria. Ela sabe de minha jornada ao Mundo Sombrio, mas desconhece que, srpente mpos novos a ontrada num encontrada num velho ___________________________________________________________________nesses novos tempos, a grande Serpente dorme no âmago do abismo, o que eu suponho ser um perigo a menos.
    Mesmo assim, tenho pesadelos com os servos do mal. Lobos-homens me perseguem no bosque e arrancam-me nacos de carne. Há sempre tanto sangue!
    Todavia, a criatura que me causa horror e agonias noturnas é a outra manifestação da Serpente. A não ser que se tire o cálice, ela nunca será libertada. Nunca.
    Durante anos escondi esse segredo e sei que isso, um dia, custar-me-á a vida. Li, nas muralhas do Mundo Sombrio, descrições de maldades inomináveis, feitiçarias terríveis, invocações de espíritos maus. Contudo, a Rocha Nova me apaziguou a alma. Parece não ter a mesma idade dos séculos deste solo tenebroso.
    A quem desvendar tal Mundo, saiba que a Serpente Antiga dorme. Menos suas criaturas tão despertas, sempre ocultas, que se esgueiram entre rochas antigas e se escondem da luz.
    O Fogo Alvo é o único que pode afastá-las. Use-o! Será muito necessário. E lembre-se...”
    As runas, nesse ponto, estavam apagadas. O mago supôs que o estrago havia sido causado pela umidade de dentro do baú. Mesmo assim, algumas coisas no pergaminho não faziam sentido. Algumas palavras misteriosas, enigmáticas, deixaram o mago confuso e pensativo.
    No rodapé do pergaminho, o mago observou, mais uma vez, o desenho do mapa de uma montanha. Era chamada de Shilaibhron, a montanha vermelha. Abaixo dela, havia uma grande nódoa preta que podia ser interpretada apenas como um borrão de encaustum[1]. Ou, talvez, fosse o mundo de densas trevas esboçado pelo misterioso portador.





*

    Quase vinte anos se passaram, e a montanha Shilaibhron, ao norte das Astúrias, mantinha a seus pés um pântano fechado.
   Três rapazes sobre seus cavalos entraram na trilha que seguia até o pântano. Uma neblina baixou sobre eles. Os cavalos relincharam.
    ― O nevoeiro desce do alto de Shilaibhron ― comentou Seuhtam, olhando para o cume da montanha. ― Acendamos o fogo. Está começando a escurecer.
    ― Espere, ainda é cedo ― contrapôs Lemikel.
    O outro não lhe deu ouvidos. Pôs fogo na lã enegrecida da tocha.
    ― Por que há tantas sombras neste bosque? ― perguntou Seuhtam, temeroso.     
    ― Estamos próximos do Mundo Sombrio. ― A voz de Alanur era pesada e o olhar profundo.
    ― Vejam! Aquela pedra grande cobre uma fenda na montanha ―  disse Lemikel, entusiasmado.
    Os três desceram dos cavalos e acariciaram os focinhos dos animais. Alanur seguiu em frente, prostrou-se perto da rocha lisa e a tocou.
    ― Tão gelada quanto o inverno ― proferiu o rapaz, arrancando musgos e heras da pedra.
    Do farnel de couro, tirou uma tocha betumada e dois pedregulhos. Alanur cerrou os olhos e esfregou as mãos, pousando-as sobre os pedregulhos. Eles se uniram, como por magnetismo, então soltaram faíscas alvas. O rapaz aproximou a lã betumada da tocha, ao encontro das centelhas. Um Fogo tão branco quanto a neve surgiu na tocha, embora não consumisse a lã.
    ― O que é? Fogo fátuo? Como fez isso? ― quis saber Seuhtam.
    Alanur não respondeu. Guardou os pedregulhos e concentrou-se em aproximar o Fogo da grande pedra.
    A Chama branca, na mão esquerda de Alanur, revelou dezenas de símbolos que zuniram e brilharam na escuridão.
    Ajoelhado, Alanur passou os dedos  pelos cabelos e apoiou o queixo com a outra mão, muito pensativo.
    ― Há algo errado? Está tudo bem? ― perguntou Seuhtam, outra vez.
    ― Deixe-o. Ele precisa pensar para poder traduzir ― ordenou Lemikel.
    Alguns minutos depois, mergulhado entre as sombras e a claridade do Fogo, Alanur declarou:
    ― É um poema.
Os dois outros se aproximaram.
    ― Um poema? ― Seuhtam repetiu, descrente.
    ― Um poema de Odin ― completou Alanur, convicto. ― Preciso recitá-lo.
    ― Apenas isso? ― disse Lemikel.
    ― Não tenho certeza... ― titubeou Alanur.
    ― O que quer dizer? Responda-nos logo! ― exigiu Seuhtam.
    A face de Alanur tremeluziu junto à Chama branca. Os lábios hesitaram quando começou a falar:
    ― Geralmente quem declama um poema do Odin de forma errada recebe uma punição. Pelo menos nas lendas vikings é o que se diz. Esse deus apreciava a arte da música e da poesia. Se eu não declamá-lo perfeitamente, alguma maldição ou feitiço cairá sobre nós. Não há como escolher. Não depois que  as runas brilham na rocha cinza ― finalizou ele com o rosto endurecido.
    Seuhtam arregalou os olhos. A testa suava. Colocou uma das mãos sobre a boca. O silêncio perdurou por um momento até que fosse quebrado pelo uivo de um lobo.
    Lemikel interrompeu:
    ― Confiamos em você, Alanur. Nossas vidas estão em seus lábios. Sabemos que tu conheces o idioma. Aprendeste com o mago, não foi?
    Alanur afirmou com a cabeça. Respirou fundo, limpou o suor acima dos lábios. Ergueu o corpo e, de uma só vez, recitou todas as runas poéticas escritas na rocha.
    ― Nada aconteceu ― Seuhtam constatou, impaciente.
    A brisa noturna atingiu os ramos. As heras que não foram tiradas retorceram-se como serpentes vivas, arrancando-se da pedra que movia lentamente. Ficaram muito atentos ao movimento da rocha. O Fogo iluminava a face de todos eles.
    A porta para o Mundo Sombrio estava aberta.
    Os três rapazes ostentavam ares de reis. Na verdade, eram príncipes e irmãos. Languidez ou beleza excessiva não havia neles, mas a estatura e a cortesia lhes eram comuns.
    O irmão caçula, Seuhtam, logo cedo em sua vida havia sido sorteado pela calvície e uma leve obesidade. Lemikel, o irmão do meio, era musculoso, tinha um rosto firme e era, definitivamente, o mais forte dos três. Alanur era alto, magro, portador de um olhar profundo e altivo; a postura perfeita lhe dava autoridade como primogênito. Todos eles carregavam traços expressivos de majestade.
    Os príncipes entraram na caverna e o negrume os envolveu. Murmúrios estranhos agitaram os cavalos.
    ― Sinto o cheiro do horror neste lugar. ― comentou Lemikel. ― Alanur, não acha melhor montarmos em nossos cavalos?
    ― Não.  Os animais pode se apavorar e nos levar a outros caminhos.
    A boca de uma enorme serpente os aguardava.
    ― Ó, Deus! ― gritou Seuhtam.
    ― É apenas um grande entalhe ― disse Alanur, despreocupado.
    Tinha razão.  A serpente era uma visão magnífica e poderosa esculpida na rocha. Tudo  ao redor se tornara gigantesco, como a ante-sala de um grande reino. As duas presas da serpente de pedra desciam como altas colunas curvadas e pontudas até o solo rochoso.
    A visão deslumbrante estendia-se mais além. Andaram pela língua da cobra, que servia como uma enorme ponte para o interior obscuro da caverna. Na concavidade da mandíbula inferior, uma água viscosa e negra brilhava como azeviche. Era uma espécie de lago, muito extenso.
    No caminho, o rosto de Alanur assumiu uma expressão confusa , a julgar por seus olhos fitos para cima. No palato do majestoso ofídio, palavras foram entalhadas numa língua estranha:

Sarítsiser Oanut Essea Séramot Utonenev Etenepres Ad’Es

    Nenhum deles notou o reflexo da frase revelada nas águas escuras, pois estavam atentos às imensas colunas que sustentavam aquele mundo de granito negro.
    Ali, o nevoeiro era mais suave e, aos poucos, se dissipava. Eles chegaram ao fim da garganta da serpente.  Estavam então em um Grande Corredor repleto de estátuas. Alanur quebrou o silêncio:
    ― Tão antigo quanto os séculos. Aqui foi a terra de um povo que adorava velhos deuses de pedra. Os mitos dizem que em tempos remotos, um Homem de poder prendeu os exércitos da Serpente neste Mundo Sombrio.
    Os cavalos ainda estavam agitados. Os príncipes afagaram os focinhos dos animais assustados com algo que os rondava, alguma coisa que os olhos humanos não conseguiam ver. Então os três irmãos entoaram uma canção para acalmá-los. A letra dizia assim:


Bravos guerreiros caminham na alvorada
Sobre montanhas de cumes prateados

Passam por prados, florestas encantadas
Terras bonitas e lagos espelhados

Buscam tesouros antigos e malditos
Sob luar e estrelas tão brilhantes
Mas logo ouvem um berro pelos cantos
Um vulto cinza de olhos coruscantes

É um dragão terrível e noturno
Língua-de-fogo e hábito mortal
Corre no escuro tal como cão soturno
Tem boca grande e grito infernal

 “Fujam, seus tolos, p'ra dentro da caverna!” 
Diz o guerreiro em bravo tom de voz
Um cavaleiro troveja sem a perna:
“A besta-fera sumiu com um de nós!”

Na gruta negra se prestam a ficar
Cheia de teias grosseiras e medonhas
Tão gigantescas estão a revelar
Um céu turvado, repleto de aranhas...

    Não cantaram toda a melodia; Lemikel ergueu uma das mãos, acenando para os irmãos silenciarem.
    ― Fiquem quietos. Andem devagar. Sem movimentos bruscos. Eles nos observam ― sussurrou o irmão, indicando com a cabeça os minúsculos olhos brilhantes envoltos pela escuridão.
    Os três se espremeram, preocupados com as criaturas desconhecidas ao redor. O Fogo na mão de Alanur tornou-se mais vívido, pois o nevoeiro ficara mais denso ali. Quando a Chama vigorou seu brilho prateado, as criaturas se afastaram.
    ― Que tipos de animais são esses? ― sibilou Seuhtam.
    ― Não queremos descobrir. Não agora. ― respondeu Alanur. ― Mantenham os cavalos mais unidos. Seuhtam, vá na frente.
    O irmão caçula hesitou. O fogo comum que carregava iluminou o longo corredor repleto de estátuas abissais, algumas disformes pelo tempo, outras que se assemelhavam a demônios envoltos na penumbra.
    Caminharam através do Grande Corredor durante um longo tempo.
    Seuhtam andava em ritmo lento quando tropeçou. A tocha que segurava nas mãos mergulhou nas trevas à sua frente. Lemikel correu, soltando um grito e agarrando o irmão pela roupa bem a tempo de evitar o tombo. A tocha  se transformou num ponto brilhante e sumiu.
    ― Um fosso! ― concluiu Lemikel, surpreso.
    Seuhtam tremia, os olhos assustados:
    ― Sim. Eu percebi. Por pouco, muito pouco!
    ― Na verdade, estou lembrando de que este é o caminho certo do mapa ― falou o primogênito.
    Quando o Fogo iluminou ao redor, contemplaram a escadaria do grande fosso, menos tensos e mais alegres.
    ― O que diz a adivinha do maldito Soturno, Alanur? ― perguntou Seuhtam.
    ― “Nas trevas eu estou. Algo mortífero me protege. Poderoso eu sou”. Mais escuro que esse fosso não tem igual. Estamos indo pelo caminho certo.
    ― Será que está mesmo lá, na escuridão? ― Lemikel olhou, cheio de dúvidas, para os irmãos.
    ― Vamos acreditar que sim ― declarou Alanur. 
    Quando começaram a descer os primeiros degraus, puxaram as rédeas dos cavalos para que os seguissem. Os animais insistiam em recuar, relinchando, contraindo os músculos.
    ― Estão pressentindo algum tipo de mal ― presumiu Lemikel ― Lá embaixo existe mesmo alguma coisa.
    ― É a bruxaria antiga deste lugar ― vozeou Seuhtam, olhando para os lados, nervoso.
    ― Os fortes em espírito não a temem ― acrescentou Alanur.
    O primogênito sussurrou algo por cima dos cavalos, uma língua estranha. Seu corcel logo se acalmou. A égua de Seuhtam estava menos agitada e o cavalo de Lemikel começou a obedecer seu dono. Os animais desceram os primeiros degraus com mais entusiasmo.
    A escadaria em espiral tinha o lado direito cravado na parede rochosa. Mas no lado oposto não havia proteção, apenas o vago escuro, como um abismo. Contudo, os degraus eram bastante largos.
    Algumas figuras esculpidas começaram a  surgir. O Fogo branco derramou sua luz sobre a rocha. Os irmãos se depararam com um imenso relevo de pedra.
    ― Meus irmãos, observem. Eis o testemunho de uma história antiga. ― comentou Alanur.
    ― Um entalhe tão perfeito que parece vivo. ― disse Lemikel, impressionado com a arte. Ultrapassou os irmãos, muito interessado em contemplar todos os detalhes.
    No primeiro relevo, centenas de deuses austeros posavam, soberbos. Todavia, mostravam-se incomodados com outro personagem entre eles.
    ― É apenas um cordeiro. Mas por que os outros deuses o olham com repúdio? ― indagou Seuhtam.
    Desceram outros degraus até ouvirem a voz de Lemikel ecoar mais à frente entre as paredes do fosso:
    ― Vejam. Há outros entalhes na rocha!
    O relevo seguinte expunha deuses impiedosos machucando o Cordeiro. Alguns o observavam de longe, sem nada fazer. Outros apenas escarneciam dele, sorrindo maldosamente.
    Seuhtam observou que o pequeno Cordeiro tinha as patas dobradas como se fraquejasse de dor.  Aproximou-se para  examinar melhor os detalhes: o deus viking Loki segurava um chicote de espinhos compridos e usava-o para surrar o Cordeiro, antes tão perfeito em seus traços.   
    ― Nos olhos de Loki há muita fúria e crueldade ― percebeu Lemikel.
    Os príncipes desceram vários degraus. Quanto maior o relevo, maior o número de degraus. Todavia, o interesse era grande e logo o grupo contemplou  o terceiro  entalhe.
    Desta vez, o deus-grego Hades perfurava o lado do Cordeiro, que já  encontrava-se caído, humilhado e morto.
    Muitas divindades tinham gargalhadas esculpidas  nas bocas de pedra. A deusa Hera não escondia  o sorriso malicioso.
    ― Para eles, é apenas mais um deus. ― Alanur ergueu um dos dedos. ― Vejam como Kali, a deusa indiana, brada alegremente tocando tamborins com seus muitos braços. Odin também demonstra aversão enviando dezenas de corvos que tiram nacos do Cordeiro. Todos os deuses o desprezam.
    Seuhtam negou com a cabeça.
    ― Não compreendo tanto ódio e maldade. É um animal inocente. O que significa tudo isso?
    Os três desceram mais depressa. No quarto  entalhe, os deuses dançavam com fervor sobre o corpo do Cordeiro, esmagando-o com as solas dos pés.
    Os príncipes observaram com mais atenção. Baco oferecia vinho a todos. Entre as pernas dos inúmeros deuses, uma serpente devorava um corvo maior que sua boca. As presas do ofídio eram tão aparentes quanto o líquido preto que fluía delas, minando da própria rocha encardida.
    ― Não toque! ― gritou Alanur para o irmão.
    ― Por quê? ― Seuhtam recuou a mão.
    O primogênito apenas olhou para o mais novo como se o último estivesse em perigo. Seuhtam se conformou.
     Os príncipes desceram muitos degraus. O Fogo que Alanur carregava se expandiu.  As Chamas penetraram a última rocha entalhada, a luz prateada entrou nas frestas. 
    ― Realmente existe! A Rocha Nova. ― Alegrou-se Alanur. Então ficou em silêncio, ajoelhou-se e chorou.
    Os outros dois irmãos tinham os olhos admirados, as bocas abertas e os suspiros velados graças à beleza daquele último entalhe na pedra.
    Até os cavalos tinham os semblantes atentos e logo em seguida baixaram as cabeças como um sinal de profundo respeito.
    Naquela última cena, o Cordeiro havia ressurgido. Glória, poder e um leve brilho emanavam de suas feições, talvez devido ao Fogo que parecia reconhecê-lo.
    O Cordeiro observava as divindades ajoelhadas e muito contrafeitas diante dele. Bocas de pedra estavam fechadas. Olhos, outrora abertos, mostravam-se cerrados como se uma luz viva os cegasse.
    Notaram que o Cordeiro, em suave arquitetura, revelava também um semblante plácido e um leve sorriso. O sol o envolvia, como se Ele fosse a única luz; e as nuvens estavam sob seus pés.
    Mesmo em pedra, o entalhe era tão perfeito que qualquer um que o olhasse poderia temê-lo.
    ― Ele reviveu! Com certeza fez uso da magia! ― exclamou Seuhtam.
    ― Sim. A Magia mais poderosa de todas, pois onde estaria a esperança se o Cordeiro não tivesse vencido a morte? ― Alanur sorriu.
    ― Olhem. A serpente se detém sobre a montanha mais alta, entre o sol e as nuvens. Mas está morta. A pata do Cordeiro esmaga sua cabeça! ― descreveu Lemikel, observando melhor os detalhes.
    ― Nunca nos esqueceremos do que testemunhamos aqui, meus irmãos. ― Alanur enxugou o rosto, voltando a ficar de pé.
    ― É maravilhoso. Jamais esquecerei.
    ― Tem razão, Seuhtam. É uma visão tão celestial que divide nossa alma ao meio ― concluiu Lemikel.
    Um vulto do tamanho de um falcão caiu sobre Alanur. O movimento da espada de Lemikel foi ligeiro. O som do metal cortou o ar. Em meio à agitação, o Fogo alvo que o primogênito carregava também caiu no fundo do fosso, desaparecendo junto ao corpo da criatura alada.
    ― Um morcego gigantesco! Aquela coisa arrancou a tocha de suas mãos. Arrancou! ― gritou Seuhtam. 
    ― Ainda consegui decepar-lhe a cabeça! ― Lemikel bradou.
    Os três ficaram parados nas trevas, silenciosos. O Fogo incandesceu lá do fundo e iluminou a escadaria.  Viram então que não estavam tão distantes do fim. Apressaram-se na descida.
    Seuhtam, quase indo ao encontro do Fogo, estancou os pés.
    ― Por que estamos aqui? Por que realmente estamos aqui, meus irmãos?
    Lemikel estranhou a pergunta, encarando Alanur, que sorriu.
    ― Estamos por amor e para quebrar o feitiço que se abateu sobre elas. Nossas belas amadas ― lembrou o primeiro.
    ― Neste exato instante, arriscaremos tudo! Nossas vidas cada vez mais estão em perigo neste lugar. ― Seuhtam olhou ao redor, temeroso.
    ― Se acredita que não vale a pena arriscar a vida, por que veio então? Eu estou aqui pelo amor incondicional. É um amor absoluto, Seuhtam. Não há limites para isso ― rebateu Alanur.
    ― Eu também vim por amor. Tudo o que tenho, mais do que a coragem e o ânimo para viver, vem tão somente dele ― declarou Lemikel, com firmeza.
    Seuhtam continuou calado, seu rosto carregava traços de dúvida e, talvez, um pouco de desespero.
    ― Vê? Sentirias mais coragem, mais esperança, terias mais fé em meio a toda a aflição e a esta escuridão eterna se tivesses amor. ― acrescentou Alanur, com desvelo.
    ― Eu o tenho, ou não estaria aqui ao lado de vocês, meus irmãos. Apenas procurava ouvir palavras como as suas. Um tipo de pressentimento se abateu sobre mim.
    Deram tapinhas nas costas um dos outros. Seguiu-se um abraço demorado entre os três.
    ― Tive a leve impressão de que será a última vez que nos abraçaremos.
    ― Não diga besteiras, Seuhtam. ― Alanur apertou as costelas do irmão, abraçando-o de novo. ― Viu? Não foi a última vez.
    ― Sempre tão dramático. ― Lemikel fez uma careta.
    Eles continuaram a seguir o caminho enquanto sombras  projetavam-se nas paredes rochosas.
    Os cavalos estagnaram. Uma brisa estranha meneou os cabelos de Alanur.
    No final da escadaria, depararam-se com outro salão bastante amplo Entretanto,  a escuridão não dominava aquele recinto. Uma fraca luz dourada o iluminava. No lado oposto havia um montículo enegrecido de pedra que tinha algo reluzente sobre si.
   O montículo não estava muito longe dos príncipes. Eles caminharam até  ele  e o contemplaram.  Ali jazia um cálice simples feito de cipreste com uma fina borda de ouro e um peixe esculpido na própria madeira. 
    Os três se entreolharam e depois sufocaram as risadas.
    ― Não pensei que fôssemos encontrar tão rápido ― falou Lemikel, rindo. ― Espere! Tem certeza de que é esse o cálice? Devia ser feito apenas de madeira. Nada mais. Ele era um humilde Carpinteiro.
    ― Durante séculos, outros tiveram acesso a essa relíquia, Lemikel. Mesmo com a borda de ouro, vê-se que é simples, mas não deixa de ser sublime. Afinal, era o Filho do Altíssimo. Quem imaginou essa arte de ouro o fez para representar Sua majestade. Ele também tinha amigos ricos, o que poderia ter determinado a origem do objeto. Pelo que sei e durante anos estudei, a madeira desse cálice é nobre, e só pode ser encontrada em uma floresta muito distante. Vem de um lugar que poucos conhecem. Fica além do mar, muito mais longe do que as Índias. É uma terra quente de árvores frondosas, descoberta pelas primeiras expedições do Rei Salomão. Dizem que as naus de Tarsis eram feitas com a madeira proveniente desse lugar. Nenhuma tempestade podia afundá-las. ― explicou Alanur, apanhando de volta o Fogo alvo caído no chão, bem ao lado de um monstruoso morcego partido ao meio.
    O Fogo aos poucos estendeu suas labaredas até o cálice.
    ― Lembre-nos a advinha, Alanur. ― interveio Seuhtam.
    ― “Nas trevas eu estou. Algo mortífero me protege. Poderoso eu sou”
    ― Bem, sabemos que o cálice está sobre a pedra. É um artefato de poder. O Mundo Sombrio é um lugar de trevas ― explicou Lemikel. ― No entanto, o que significa o “algo mortífero me protege”?
    Olharam para o objeto cuja beirada de ouro refletia uma luz dourada no salão subterrâneo. A luz do cálice também emanava seu brilho sobre uma porta larga de pedra, bem ao lado, a poucos metros de onde os príncipes estavam. Eles não a tinham visto e então resolveram ir até ela.
    ― Podem ouvir? ― perguntou Seuhtam. ― São gritos e ranger de dentes.
     Lemikel pôs um dos ouvidos sobre a porta.
    ― Estão vindo  daqui detrás. ― confirmou Lemikel.
    ― “Larga é a porta que conduz à perdição e muitos passarão por ela” ― proferiu Alanur, em grego. Ele voltou os olhos para o cálice. ― Um objeto modesto sobre uma grande pedra cinza ― continuou ele, como se meditasse. 
    Os irmãos se aproximaram.
    ― Como vamos saber se um feitiço foi lançado sobre essa coisa? Não é você, Alanur, o primogênito? Aquele que aprecia a feitiçaria? Ela devia ter lhe dado algum bom senso ― resmungou Seuhtam.
    ― Não confunda magia com feitiçaria, Seuhtam! Quando não conhecemos algo, nós o destruímos mesmo que pela língua. A feitiçaria é invocada com sacrifícios de sangue. Mas os que a conjuram não conhecem suas proporções. Ela vem de alguma fonte obscura e pode ser perigosa. A magia é um poder que não emana dos homens, ninguém pode chamá-la. Mas me refiro principalmente à Magia Antiga. Essa existe como um tipo de força. Está sobre nós desde o princípio dos tempos. Ela formou tudo cuja explicação dos homens não alcança ― Alanur  fitou Seuhtam nos olhos. ― Assim como as estrelas do céu, o sol que surge pela manhã, essa Magia está acima de todos esses, acima de nós. Eu chamo esse poder de Magia, pois minha pouca sabedoria não me permite dar outro nome.
    Seuhtam mostrou um semblante impressionado com a explicação do irmão. Entretanto, seu tom de voz tinha a intenção de enfrentá-lo:
    ― E o que você invoca quando pronuncia palavras estranhas? Não é feitiçaria, meu irmão?
    ― Não ― respondeu Alanur muito sereno. ― É a Língua dos Anjos, Seuhtam. O som dela acalma os corações aflitos e desfalece os espíritos ruins.
    Alanur voltou a fixar os olhos no cálice. Seu semblante esmoreceu.
    ― O que há com você, meu irmão? ―  quis saber Lemikel.
    ― Sinto-me febril. Meu corpo está formigando ― falou Alanur, respirando com dificuldade. O corpo tremeu. ― Depressa! Peguem logo esse cálice. O mal pode estar despertando!
    Lemikel avançou sobre o montículo, puxando o objeto para si. Teria arrancado da pedra se o objeto estivesse preso. Afastou-se depressa, juntando-se aos irmãos. Esperou que algo acontecesse, olhando ao redor. Tudo continuava tranquilo.
    Todos eles viraram as costas para o montículo. Correram em direção à escadaria. Os cavalos relincharam, muito agitados.
    O crepitar de ossos ressoou nas paredes.
    Os príncipes pararam. O montículo enegrecido dilatou, expandindo-se rápido como uma bolha de massa cinzenta, revoluta e encorpada.
    ― Fizemos algo horrível. Era um engodo! ― Seuhtam gritou. ― Não ficarei para ver! Corram!
    Seuhtam e Lemikel montaram nos cavalos e começaram a subir as escadas. Alanur ia fazer o mesmo, mas algo muito forte chamou a sua atenção. 
    Quatro asas nasceram do montículo enegrecido, seguido por uma cabeça serpenteada com chifre mais negros ainda. A criatura de olhar maldoso encarou Alanur. Tinha olhos grandes que cintilavam uma luz esverdeada. Das narinas bem abertas, uma rajada de vapor foi expelida violentamente.
    ― “...a criatura que me causa horror e agonias noturnas é a outra manifestação da Serpente.” ― Alanur disse em voz alta. ― Eu não a temo!
    ― Estás louco? Venha conosco! ― gritaram os irmãos sobre os cavalos.
    ― É um liath! Uma espécie de dragão perseguidor. Ele vai nos seguir até a morte! ― Alanur gritou erguendo o Fogo alvo, que se expandiu em luz e flamas.
    A criatura reagiu, expelindo chamas verdes.
    ― Teu fogo inominável não vai nos conter! ― Alanur trovejou. Procurou seu corcel negro e garboso, mas ele estava logo atrás dos cavalos dos irmãos, que o olhavam apreensivos da escadaria. ― Saiam daqui! Corram! Voltem pelo Grande Corredor. Encontro vocês!
    ― Estamos sem o Fogo alvo! Deve vir conosco, meu irmão! ― Lemikel gritou.
    As asas cor de nuvens tempestuosas do dragão se abriram. Ele as bateu com força.
    Lemikel e Seuhtam subiram ainda mais a escadaria,  montados  nos cavalos, enquanto a criatura voava acima de suas cabeças. Alanur estagnou com olhos vidrados, atentos.
    O dragão sussurrou algo em uma língua de som rascante e persuasiva.
    Os irmãos contiveram os cavalos amedrontados com o som que se propagava nas paredes rochosas. Alanur declamou algo em sua habitual língua estranha.
    A chama verde jorrou da boca do liath entre os dentes pontiagudos. O Fogo alvo expandiu-se como um escudo, defendendo Alanur.
    ― Teu olhar não dominará os sentidos da minha alma! ― o príncipe gritou, chamando a atenção do dragão que procurava o cálice. Alanur voltou-se outra vez para os irmãos. ― Já disse, vão embora! Levem o cálice! Vou para as fendas! Usem bastante o fogo comum. Logo os encontrarei!
    Lemikel amarrou o objeto sagrado na cintura e partiu com Seuhtam, os dois montados nos cavalos.
    O dragão urrou, vomitando labaredas no ar, e começou a seguir os dois príncipes que ainda subiam as escadas. Todavia, Alanur tirou a espada da cintura e a arremessou como uma flecha na couraça do dragão. A lâmina penetrou por entre as escamas do liath, que gritou e virou a cabeça à procura do causador de sua ferida.
    O dragão mostrou as garras e arremessou-se como um raio sobre Alanur. Ficou tão próximo do príncipe que o jovem se jogou no chão, puxando  rapidamente a espada da carne da fera. Alanur ainda desferiu outro golpe profundo e partiu a ponta da cauda do dragão. Outro guincho agudo encheu o salão.
     O príncipe, contudo, também sangrava. O liath rasgara seu ombro.
    Alanur esgueirou-se para pegar a tocha que caíra de sua mão. O príncipe olhou para os irmãos montados nos cavalos que já desapareciam no alto da escadaria.
    Quando o dragão tentou agarrá-lo outra vez, Alanur ergueu a espada, desferindo-lhe um golpe no peito. O monstro gritou e sibilou como uma serpente, afastando-se dele.
    Alanur se levantou. Correu pelo salão. Outros deuses de pedra sorriam com crueldade. O príncipe não demonstrava sentir qualquer dor, mesmo com o ombro  que exibia a carne dilacerada e o sangue que escorria.
    O dragão sussurrou mais palavras sedutoras, perspicazes; tal como os encantamentos de uma velha bruxa.
    O liath cuspiu seu fogo maldito. A cabeça da criatura serpenteava como se participasse de uma caçada. Alanur era a presa. O príncipe virou-se com a espada em riste, brandindo-a severamente para afastar o monstro. Ergueu o corpo para cima, na defensiva. Mas um semblante desesperado caiu-lhe sobre a face, pois não notou a fenda escura atrás de seus pés.

II

    Um brilho mortiço banhava Lemikel e Seuhtam. Já haviam chegado à  extremidade oposta do Grande Corredor e carregavam apenas o fogo comum. Os cavalos relincharam, recuando. Seuhtam acenou para esquerda do corredor, para os olhos brilhantes na escuridão.
    ― Estão nos observando desde que entramos aqui. Devem ser likans. Certa vez ouvi falar sobre tais criaturas. Se bem que estes são maiores do que os seres descritos nas lendas. Espero que Alanur nos encontre logo. Percebi que o Fogo alvo as afasta. Somente Alanur sabe a maneira certa de acendê-lo. Acho que a chama que temos não é suficiente.
    ― Likans? ― repetiu Lemikel, em tom de dúvida ― Não. Estes são muito mais primitivos. Cinzentos como a bruma. Observe o movimento deles. São mais altos que nós e andam curvados. A pelagem é mais clara que dos lobos negros. Alanur disse algo sobre eles. Chamam-se foulkus. Os filhos doentes de Fenrir. ― ciciou Lemikel
    ― Fenrir, o deus-lobo. No pergaminho são chamados de lobos-homens. Seriam mais lobos do que homens? O comportamento deles é bem hostil. 
    As feras mostravam presas ameaçadoras e brancas como marfim, a uma distância média dos cavalos. Os foulkus emitiam um rosnado baixo, os focinhos compridos se contraiam.
    ― Se estão presos há tanto tempo aqui, do que se alimentam?  ― perguntou Seuhtam.
    Uma das feras emitiu um gruído em resposta. Curvou-se e começou a andar sob as quatro patas junto a outros mais jovens. Atacaram um foulku doente e velho. Arrancaram nacos da carne do animal que gania com insistência. Os bichos devoraram suas entranhas em alguns minutos e não ficaram nada satisfeitos com o sabor.
    Seuhtam, boquiaberto, disse:
    ― Você viu isso, Lemikel? É horrível. Praticam o canibalismo.
    ― Nessas circunstâncias, são obrigados. Alimentam-se um dos outros para poderem sobreviver. Entretanto, ainda desconheço a natureza deles. Uma coisa é certa, são traiçoeiros. Demonstram natureza mais lupina que humana, apesar de se erguerem como nós. E mesmo sem o Fogo alvo, acho que temem também o fogo comum.
    Os foulkus se espremiam a dez pés de distância dos cavalos. Estavam mais próximos. Os olhos brilhavam como vaga-lumes em pares. Comportavam-se como uma alcatéia. Eram liderados pelo mais forte deles, de presas maiores, que lembrava um dente-de-sabre.
    ― Percebo que realmente detestam o fogo. ― O caçula  agitou a tocha  que trazia nas mãos. Sua égua, a única fêmea entre os cavalos, relinchou, resistindo aos gruídos animalescos que vinham da penumbra.
    ― Não chegue tão perto, Seuhtam. Melhor ficarmos longe. Aqui é o território deles há séculos.
    Muitos, no escuro, ergueram as orelhas como se estivessem interessados na figura humana que se aproximava sentada  sobre uma égua branca.
    ― As patas são bem grandes ― Seuhtam comentou ― Em minhas caçadas nunca vi feras de garras tão poderosas e afiadas. Mesmo sendo muito magros, como se desenvolveram em um lugar assim tão hostil?
    ― Cuidado! ― gritou Lemikel.
    Um foulku saltou sobre a égua branca de Seuhtam. O belo animal se assustou e reagiu trotando.  
    ― Pule para cá! ― Lemikel juntou-se ao irmão para puxá-lo à força até seu cavalo. Usou o fogo para afastar os foulkus, encostando-o no pelo de um deles. O fogo rapidamente se espalhou pelo corpo da criatura, que fugiu como uma tocha ambulante em direção às trevas. 
     Entretanto, esse ato de pouco adiantou. Uma multidão de foulkus se amontoou ao redor dos príncipes. Seuhtam chutou o focinho de um deles com tanta violência que os ossos se partiram. O bicho uivou de dor.
    ― Asas de Águia! Não! ― berrou Seuhtam, referindo-se à égua que relinchava, amedrontada.
    Lemikel, em desespero, usou a tocha para tentar afastar mais foulkus que chegavam aos montes. Ainda assim, as criaturas davam patadas violentas no ar, avançando sobre os príncipes, como se uma fúria repentina tivesse caído sobre elas.
    Alguns foulkus já se aglomeravam perto do corcel de Alanur, que ficara sozinho. O animal se ergueu, elegante, em sinal de defesa.
    Seuhtam brandiu a espada com histeria, decepando a cabeça de um foulku e depois de outros três. No entanto, era tarde.  Asas de Águia gemeu alto. O terror se abateu sobre eles. Um dos foulkus arrancara parte da cocha da égua. Os outros se atiraram sobre ela com tanta força que a fizeram cair no chão.
    Seuhtam por pouco não foi arrastado pelo amontoado de pelos gris. Lemikel o puxou bem a tempo para seu cavalo. Imediatamente correu até o corcel, quase derrubando o irmão.
    ― Segure nas rédeas! Não vou aguentá-lo por muito tempo! Não posso largar o fogo! ― gritou Lemikel.
    O irmão o largou. Seuhtam escorregou do cavalo, mas manteve as mãos firmes nas rédeas de couro que se esticaram.
    O cavalo continuou a galope. Seuhtam foi arrastado por um longo caminho, tentando desviar das patas do animal. Alguns foulkus já se aproximavam depressa.
    ― Suba! ― disse Lemikel. Já havia alcançado o corcel negro de Alanur. Os dois cavalos corriam juntos. ― Vamos! Suba!
    Seuhtam segurou as rédeas e forçou o corpo enquanto era arrastado. Escorregou outra vez. Então olhou para trás. Os foulkus expunham as presas afiadas. Um deles abocanhou seu calcanhar. O rapaz debateu as pernas com violência.
    O calcanhar de Seuhtam sangrava, apesar de ele nada perceber.  O suor e a palidez preenchiam seu rosto. Ele concentrou mais força nas mãos e, por fim, com a ajuda de Lemikel, conseguiu  montar no cavalo.
    ― Ó, Deus! Abandonamos Asas de Águia! O que fizemos? ― Seuhtam olhou para trás, observando o belo animal ainda ser devorado pelas feras.
    Enquanto cruzavam depressa o amplo corredor, os foulkus os seguiam muito agitados, arrastando o corpo da égua branca. Outros deles, mais atrevidos, avançavam de raspão sobre o cavalo de Lemikel.
    Seuhtam virou a cabeça outra vez: uma massa cinzenta ficou para trás, devorando a égua, que agora era apenas uma mancha pálida na escuridão.
    O estalar de ossos, o bater de dentes e os grunhidos bestiais ecoaram no Grande Corredor. A alcatéia cinzenta manteve-se unida por algum tempo, disputando entre si os restos da égua.
    ― Se não fosse por ela, estaríamos mortos! ― berrou Lemikel, forçando os cavalos para que galopassem mais rápido. ― Não tínhamos o Fogo capaz de afastá-los. Agradeça a Deus. Asas de Águia salvou-lhe a vida com a morte!
    Seuhtam começou a chorar. Não era um choro de desespero, mas o lamento de uma profunda saudade.

III

    O lugar era escuro. Alanur tocou o próprio ombro. Os dedos ficaram manchados de vermelho escarlate.
    A água cristalina batia na cintura do príncipe. Alanur estava dentro de uma espécie de poço profundo, uma fenda. Rapidamente começou a procurar a tocha com o Fogo alvo. Aquele tipo de fogo não podia ser apagado pela água.
    Algo brilhava próximo a seus pés.
    Outra coisa desviou a atenção do príncipe. Estalos baixos como o ruído de chuva.  Ele olhou para cima. Dentro da garganta de pedra, entre rochas pontiagudas, viu algo semelhante a serpentes escuras.
    Alanur alterou a expressão do rosto. As coisas que tinham forma de serpentes eram centopéias gigantes, negras. As presas longas expeliam um fluido leitoso. Deixou de lado a busca pelo Fogo e puxou a espada. O som de metal as atraiu.
    Uma delas se atirou sobre o príncipe, mas ele foi ágil, cortado-a ao meio. Outras cinco caíram sobre ele: uma sobre o ombro, duas enroladas no braço, uma última pendurada nas costas. A quinta centopéia havia sido perfurada pela lâmina. Alanur soltou um grito em sua língua estranha. As centopéias caíram de seu corpo. Porém, havia outras saindo das ranhuras da rocha.
    Alanur apressou-se em pegar a tocha no fundo da fenda. Ao tirá-la da água, antes cristalina, percebeu que logo se transformara em líquido sujo e espesso. Mesmo assim, afundou-se nela, buscando se proteger.
    Bem lá no fundo, os pés encontraram uma fissura. Talvez a água entrasse por ali. A abertura na rocha era do tamanho exato de seu corpo. Ele mergulhou.
    O Fogo clareou a água e tudo mais ao redor no canal submerso.   Algo escuro passou próximo a ele, talvez uma criatura aquática desconhecida do Mundo Sombrio. Alanur continuou seu percurso.
    Chegou ao outro lado, finalmente respirando o ar.  Trazia um lodo escuro sobre o rosto enojado. Estava numa espécie de caverna igualmente semi-submersa. O príncipe se arrastou pelas águas imundas. Raízes de árvores pendiam do teto arenoso, chegando até a água.
    Muitas daquelas raízes se mexiam. O ruído de chuva era dez vezes maior.
    Ao olhar para cima, enrugou a testa. No teto do túnel caminhavam dezenas de centopéias. O Fogo iluminou algumas pretas, outras vermelhas, as mais raras descoradas e macilentas.
    Alanur mergulhou com a água até os ombros. O Fogo pareceu entender a ação do príncipe, diminuindo sua intensidade.
    Uma luz amarela e forte surgiu no fim da caverna submersa. Os raios dourados afugentavam as centopéias dali.
    Alanur subiu uma encosta comprida. A cada passo apressado, a inclinação se tornava mais alta. Até que a água ficou rasa e logo em seguida secou. O sol penetrava ainda mais forte naquela parte da gruta.
    Encontrou uma fissura arenosa e começou a aumentá-la com as mãos.
    Algo lhe chamou a atenção. Ecos de uma gritaria distante. O som vinha de seu lado direito. Encostou um dos ouvidos na parede de terra. Um pedaço arenoso se desprendeu. 
    Suado e coberto de sujeira, Alanur enfiou a tocha de Fogo alvo no solo, livrando as mãos para cavar com pressa. Puxou raízes e pequenas pedras. Descansou o braço e tocou no ombro ensanguentado.
    Os ecos de vozes aumentaram. Voltou a cavar com mais ânimo. Fragmentos de rocha se soltaram. Os gritos eram tão altos que invadiam a gruta.
    Eram gritos de Seuhtam e Lemikel.

IV

    ― Acenda o círculo! Jogue o fogo sobre a seiva! Rápido! ― berrou Lemikel.
    ― Só temos isso. Não há mais nada ― informou Seuhtam.
    Os foulkus ameaçavam os príncipes mostrando os dentes com restos de carne. Os braços longos cortavam o ar na tentativa de atingir os príncipes, que se defendiam com o fogo comum. Os dois cavalos relinchavam e ocasionalmente davam coices no ar.
    A multidão de foulkus se dividiu, tal como um mar de veludo cinzento sendo cortado por uma chama. Seuhtam franziu o cenho e olhou por cima do ombro do irmão. Lemikel curvou o pescoço, curioso. Um homem sujo corria na direção dos dois.  Trazia na mão direita uma tocha de Fogo branco e, na cintura, a espada. Os foulkus abriram caminho, amedrontados com a luz.
    ― É Alanur! ― os dois gritaram ao mesmo tempo.
    O irmão se aproximou, exasperado:
    ― Seuhtam, suba no cavalo com Lemikel. Fiquem perto de mim. Sob a claridade desse Fogo nada acontecerá!
    Os irmãos o obedeceram. Alanur montou em seu corcel.
    Enquanto os cavalos galopavam, os seres gris começaram a segui-los em meio às sombras disformes. Escoltavam os príncipes freneticamente: o foulkus mais novos corriam à frente, os mais velhos, atrás. A saliva lhes caía da boca, seus olhares eram famintos.
    Seuhtam se assustou quando um deles passou perto.  a criatura atrevida puxou a bagagem com todo o mantimento dos príncipes. Os dois pedregulhos que acendiam o Fogo alvo foram guardados ali. Seuhtam observou que aquele lobo-homem era musculoso, o mais forte de todos.
    ― É o líder da alcatéia ― Alanur gritou. ― Precisamos sair logo daqui!
    ― Não temos mais comida nem água. ― informou Seuhtam.
    Os uivos soavam como um coro lúgubre e infernal. Alanur bradou, apontando para a gigantesca língua da serpente:
    ― A ponte está perto!
    Quando alcançaram o arco de pedra, os lobos-homens estagnaram e ficaram para trás. Tinham o semblante perplexo, quase humano para seres tão animalescos. 
    ― É impressão minha ou a ponte está mais longa? ― indagou Seuhtam, aflito. ― É algum maldito feitiço!
    As águas escuras e profundas debaixo da ponte se agitaram, tal como um grande rio diante dos ventos de uma tempestade. O lago fuliginoso começou a encher, transbordando rápido e avançando sobre a ponte. Os príncipes ainda estavam nela quando um turbilhão de águas arrebentou.
     A muralha de água emergiu ao redor deles; um rápido brilho e as águas se abaixaram, sem os atingir. Seuhtam virou a cabeça. Alanur tinha os olhos fechados e sussurrava alguma coisa, o Fogo em suas mãos brilhava alto. O príncipe abriu os olhos. Os três continuaram a travessia da ponte e, por fim, chegaram ao outro lado.
    Um altíssimo urro fez o Mundo Sombrio tremer.
    Algo brotou das águas negras. Vapores impetuosos esguicharam no ar. Bem perto da saída, os três olharam para trás.
    O liath estava maior, as proporções do corpo avantajadas.
    ― Ele quer o cálice de volta, mas não o terá! — gritou Alanur com a espada e o Fogo nas mãos. Deu meia-volta e voltou à ponte.
    A pedra comprida que servia como porta permanecia aberta. Lá fora, o amanhecer surgia ensolarado.
    ― Onde está Alanur? ― Lemikel virou a cabeça para os lados, quase ao toque dos raios da manhã.
    ― Olhe para trás ― disse Seuhtam com o semblante cansado.
    Alanur gritava numa língua estranha, no meio da ponte.
    ― O que ele está fazendo lá? ― quis saber Lemikel,  perplexo.
    ― Não quer deixar o dragão sair ― explicou Seuhtam. ― Vamos! Temos de ajudá-lo. O dragão não pode escapar!
    O liath se ergueu sobre o lado oposto da ponte.  As patas musculosas fizeram a rocha tremer. As asas se abriram, gigantescas como nuvens escuras. Alanur o encarou de olhos assustados, mas logo sua expressão se transformou em fúria.
    O dragão se comportava de modo curioso. Ergueu a cabeça e começou a farejar, impetuoso, sobre as quatro patas. O Fogo nas mãos de Alanur começou a brilhar intensamente. A criatura parou. A coroa de chifres negros em sua cabeça refletia o Fogo alvo.
    O príncipe ergueu a tocha o mais alto possível. O liath avançou para o meio da ponte, desafiando Alanur. Uma voz sussurrou numa língua rascante e grosseira, ecoando no teto da caverna. A língua do dragão se movimentava, asquerosa.
    O fulgor prateado da Chama estendeu-se por todos os lados. Os olhos da fera hesitaram. Com um estrondo, deu mais um passo, rugindo de modo arrepiante. O Fogo branco chiou.
    Mesmo assim o dragão avançou depressa, esguichando suas flamas. Mas a Chama branca explodiu num baque surdo e temeroso. Dois fogos, o alvo e o verde, chocaram-se, abruptos. O Fogo reagiu numa chuva abundante de faíscas, em inúmeras cores. O dragão retrocedeu.
    Os dois príncipes se aproximaram do primogênito e brandiram as espadas que brilhavam com os raios de sol. Estavam confiantes e prontos para a peleja.
    O ruído de rocha sendo arrastada desviou-lhes a atenção. O brilho das espadas diminuiu.
    A porta do Mundo Sombrio estava fechada.
    O Fogo que Alanur segurava persistia com seu brilho incandescente.  A cor tornou-se perolada, quase azul, e realçava as escamas foscas do dragão.
    ― Está tudo acabado. A esperança se esvai. Estamos presos aqui. ― Seuhtam lamentou, levando as mãos até cabeça. Ao fazer isso, seus olhos fitaram as próprias mãos. Estavam inchadas. Puxou parte das vestes perto dos pés. O calcanhar tinha veias altas, como se estivesse gangrenando. ― Acho que fui mordido por um...
    ― Não esmoreçam! Podemos sair deste Mundo pelas Fendas da Morte. ― interrompeu Alanur sobre seu cavalo. ― Encontrei um lugar onde a luz do sol penetra. Confiem em mim! Mas, agora, precisamos passar pelo dragão. Não há outro caminho menos tortuoso. Teremos que voltar pelo Grande Corredor!
    O liath rugiu com fúria. Ergueu a cabeça como um cão quando fareja carne. Aspirou o ar enevoado, depois escancarou a boca, aproximando-se do Fogo que cresceu como uma grande fogueira sobre a tocha.
    O dragão não se afastou, mas ele não demonstrava agressividade. Estava a alguns metros dos príncipes, que pareciam admirados. Na verdade, o liath sorvia o Fogo, sugando-o poderosamente. Porém, a Chama não desvanecia, como se não pudesse ser consumida.
    O dragão abriu as mandíbulas, abaixou a cabeça e, em posição de ataque, sorveu o Fogo com mais entusiasmo. A força era surpreendente.
    Alanur segurou a tocha que estava sendo puxada de sua mão.  Usou então as duas mãos, deixando a espada na cintura.
    Num movimento rápido, o Fogo e a tocha foram sugados para dentro da boca do liath. Algumas labaredas ainda dançaram no ar, depois foram tragadas pelo dragão.
    Logo a penumbra imperou ali. Lemikel se aproximou com uma tocha de fogo comum. Eles olharam o dragão que tinha o semblante animalesco esgazeado.
    ― Nossa esperança se esvai outra vez ― lamentou Seuhtam, de novo. Desta vez, observou a perna. Espessos pelos cinzentos cresciam acima do calcanhar.
    A criatura continuava silenciosa. Foi então que começou a sufocar. Puxava o ar em ardente desespero. Sobre a ponte, desabou com força, como uma grande árvore arrastada por um vendaval.
    O liath agonizou. Seu ventre se partiu, esguichando um líquido escuro. A língua caiu para fora da boca e as pupilas dilataram até estagnarem.
    A pele do dragão expeliu uma fumaça verde. Em segundos, o corpo da fera explodiu em milhares de pedaços cintilantes que se consumiram no ar nebuloso da caverna.
    Lemikel entoou um grito de vitória. Alanur disse:
    ― Não se alegre meu irmão. Não tenho em minhas mãos o Fogo de poder. Seu alimento é tão somente nossa fé. E receio que ela também se esvai.
    ― Perdemos as pedras brancas que produziam a faísca na bolsa de mantimentos. Mas ainda temos algum fogo. ― Lemikel  mostrou a tocha que restara ao irmão.
    A ação que se seguiu foi estranha e muito rápida. Seuhtam pulou do cavalo e correu para a ponte. Ajoelhou-se e usou as mãos em forma de concha. Em pungente aflição, tomou da água escura do lago.
    Alanur o seguiu correndo e deu com o cabo da espada na testa do irmão. Seuhtam caiu para trás.
    ― Não! Essa água é maldita! Seu tolo! ― gritou o primogênito. O rosto de Seuhtam estava cinzento.
    Lemikel espichou a cabeça e falou alto:
    ― O que está acontecendo aí?! Não posso vê-los direito. Aqui está meio escuro.
    O fogo nas mãos de Alanur iluminava o rosto sinistro de Seuhtam. Ele tinha os olhos espavoridos, a boca espumava, os ombros se contorciam. O rosto repugnante pediu ajuda:
    ― Alanur, minhas entranhas queimam!
    Seuhtam gemeu de dor. Arrancou a roupa do corpo até ficar nu. Seu semblante se tornou mais cinzento. Alanur se comoveu ao ver o irmão tão aflito.
    ― Por Deus! Você foi mordido por um foulku! Por que não nos disse?
    Alanur correu até Lemikel e arrancou-lhe o cálice da cintura.
    ― O que foi? ― perguntou Lemikel, mas continuou ali, certificando-se de que os cavalos não tinham ferimentos.
    Alanur não respondeu, apenas correu até o lago. Ajoelhou-se sobre a ponte e apanhou um pouco da água escura com o cálice. O líquido reagiu dentro do objeto. Ficou marrom, depois verde, por fim, tornou-se brilhante e translúcido.
    ― Meu amado irmão, aguente um pouco! Já tenho a cura em minhas mãos. ― Alanur levantou--se e retornou às pressas em direção ao caçula.
    Seuhtam gritou; Lemikel também. Foi nesse instante que Alanur desviou a cabeça e tropeçou numa rocha pontiaguda do chão. O cálice caiu de suas mãos, espalhando a água pura. O objeto rolou pela extremidade da ponte e mergulhou nas águas escuras do lago. Alanur ficou aturdido:
    ― Não! Eu o perdi! Não posso acreditar. Algum feitiço caiu sobre nós.
    As sobrancelhas de Seuhtam engrossaram. Pelos nos braços, prantos de agonia, pés e mãos cresceram compridos, repletos de garras. As orelhas pontudas ficaram maiores. Enfim, a boca se afocinhou, prolongando-se para fora em meio a ganidos de dor.
    Seuhtam não respondia mais aos chamados do irmão. Alguma coisa muito má lhe possuiu, pois as palavras de Alanur, na Língua dos Anjos, não tinham qualquer efeito.
    A voz de pranto do caçula tornara-se um uivo de terror. O corpo estava coberto de pelos cinzentos, os olhos eram dois pares amarelos e incandescentes.
    Alanur voltou às pressas das sombras.
    ― Ouvi outro grito. O que está acontecendo? ― perguntou Lemikel ao lado dos cavalos. ― Os foulkus estão mais perto. Por isso gritei.
    ― Não há tempo! Perdemos Seuhtam! Temos de ir embora! ― Alanur chorava.
    Lemikel procurou Seuhtam com os olhos. No lugar dele, um foulku se erguia, lânguido, mas ameaçador. Os outros foulkus se aproximaram, uivando diante da chegada de um novo membro.
    ― O que aconteceu?! Diga-me!
    ― Ele bebeu da água.  A alma de nosso irmão está morta, o mal habitou em seu corpo. Não há tempo! ― explicou Alanur ― Corra para a ponte de pedra!
    ― Está bloqueada! A multidão de foulkus nos impede de passar. ― Lemikel olhou para o irmão sem esperança.
    ― Há apenas aquela saída. ― O tom da voz de Alanur não demonstrava nenhuma fé.
    Não tiveram tempo de montar nos cavalos, então deixaram que fugissem para outra parte da caverna. Alguns foulkus correram na mesma direção.
   Contudo, atrás deles havia um exército bem maior e faminto. Os príncipes chegaram próximos à porta de pedra impossível de ser  movida. Alanur proferiu diversos encantamentos utilizando a Língua dos Anjos, mas todos falhavam. Talvez sua fé tivesse esmorecido.
    Viraram-se para trás, notando vários olhos sagazes e coruscantes. Os lobos-homens uivavam, alegres. Entre eles, grunhia uma criatura levemente obesa, com pelos ralos na cabeça.
    Iluminados pelo fogo da tocha, os príncipes ameaçaram os foulkus com as espadas, batendo-as nas pedras ao redor e provocando faíscas. Mas os lobos apertaram o cerco, rosnando e grunhindo, ameaçadores.
    Aquelas criaturas de pelos escuros e gris caíram sobre eles, usando  as garras e os dentes para rasgar, morder e triturar. Os príncipes lutaram com toda a força e coragem que lhes havia sobrado. Até que chegaram ao fim de uma luta tão vermelha quanto a rosa e, estranhamente, tudo ficou brilhante como a prata...





*


    ― Todos mortos! Todos mortos, Ranulfo! ― vociferou Reueliuel, olhando para um grande espelho de prata polida, cuja moldura era especialmente bela. O objeto mostrava uma imagem um tanto opaca: os rostos ensanguentados de Alanur e Lemikel. ― Diga-me o que fazer para que isso não ocorra? Diga-me! ― gritou o rei.
    ― A visão do futuro é uma jornada na escuridão, meu amigo ― disse o mago pensativo, apoiando o queixo na mão direita, sentado sobre sua poltrona diante do espelho. ― A escolha só depende deles. O espelho de Lithualin nos mostra aquilo que é possível, não o que está determinado. Nele não vislumbramos realmente o futuro, mas uma provável escolha.
    O rei puxava os cabelos grisalhos ansiosamente. O mago continuou:
    ― Sei que podemos enxergar atitudes e escolhas que acontecerão, porém, não existe nesse objeto qualquer profecia. Alanur, Lemikel e Seuhtam terão o livre arbítrio. Eles traçarão seus próprios destinos... 
    ― Deve haver um jeito de evitar essa calamidade! ― interrompeu o rei, pranteando. ― Não há nada que esse espelho mostre que não aconteça! Já perdi minha amada. Eu a vi morrer nesse maldito espelho, e aconteceu! Mas isso não ocorrerá aos meus filhinhos. Não posso perdê-los também!
    ― Homem, fique calmo. Fale baixo ou acordará a todos.
    O rei teve um acesso de fúria. Agarrou o espelho e o jogou no chão. A peça  caiu com um estampido, mas continuou intacta.
    ― Não faça isso, Reueliuel de Castelfort! ― esbravejou o mago, levantando-se da poltrona. ― Eu sou Ranulfo Maior e sei o que estou dizendo! Eles podem tomar muitos rumos. Terão muitas escolhas!
    ― Não quero que tenham essa! Não permitirei. Você viu o que aconteceu a Seuhtam. Ele virou um lobo! Todos aqueles lobos ou lobos-homens eram príncipes e reis?
    O mago o contemplou, muito sério:
    ― Sim. Muitos deles. Alguns guerreiros em busca de tesouros, também. Por isso não vimos ossadas humanas naquele solo maldito. Infectados de alguma maneira pela natureza lupina, sentem uma terrível sede e bebem da fonte mais próxima. Quanto mais tomam daquela água, mais a sede aumenta.  Basta um pouco para corromper a alma, deixando que o mal a domine. Uma grande ironia, não acha?
    ― Um horrível opróbrio, isso sim! Por favor, queime aquele pergaminho, queime! Edgard e seu feiticeiro traidor nunca saberão sobre ele, nem sobre o mapa!  ― disse exasperado. ― A petição dele jamais será atendida por meus filhos. Sei que pode acontecer daqui a vinte anos. Mesmo assim, desde já, não os colocarei em risco em favor das filhas dele, ou por causa dos interesses gananciosos de um bruxo! Nunca! ― berrou o rei, andando agitado pelo salão.
    ― Aquele feiticeiro tem interesses que colocariam em risco a vida do rei Edgard e sua família ― presumiu o mago, outra vez pensativo. ― Eu não ficaria surpreso se descobrisse que aquele bruxo velho foi o assassino do portador deste pergaminho. Antes, deve ter sido torturado com feitiços terríveis, então a dor o fez revelar muitos segredos deste Mundo tenebroso. Mas não todos eles.
    ― Pobre sujeito! ― O rei arregalou os olhos ao mesmo tempo em que esfregava as mãos.
    O mago conjecturava alguma coisa e falava como se estivesse conversando consigo mesmo:
    ― É claro! Como ele não descobriu tudo pelo portador, não teve acesso a todos os segredos sobre o Mundo Sombrio. Não sabe a maneira certa de adentrar o lugar. Então, daqui a vinte anos, jogará um feitiço sobre as filhas do rei Edgard. As três prometidas. Reueliuel, a não ser que seus filhos não se apaixonem por elas, farão de tudo para salvá-las! Serão forçados pelo amor a fazer isso. “...maldito Soturno!” ― lembrou-se o mago das palavras de Seuhtam.
    ― Tem razão! ― exclamou o rei, parando por um instante a sua andança. ― Eles serão proibidos de conhecê-las!
    ― Sim! Existe algo nas Fendas de Etrom que Soturno quer muito. ― assegurou o mago, absorto em pensamentos. ― E acho que sei o nome de tal relíquia sagrada. Ele faria de tudo para consegui-la.
    ― Ó, Ranulfo, pelo que existe de mais sagrado! Não permita que meus filhos tomem conhecimento dessas coisas. Não quero que  tenham uma morte tão terrível. Por piedade, meu amigo... Não deixe que a morte recaia tão cedo sobre eles! ― O homem curvou-se e chorou copiosamente aos pés do mago, que o olhou com pena.
    Reueliuel cambaleou, emocionado. Saiu do salão e atravessou o corredor escuro do castelo em direção a um grande quarto ornamentado.
    Lá encontrou três crianças de faces angelicais que dormiam em caminhas de ouro. O rei deu um beijo na testa de cada uma delas e ficou ali, contemplando-as.
    Em seu coração surgiu um fio de esperança e fé, pois ele faria de tudo para evitar toda aquela dor e desespero. Contudo, uma coisa ele bem sabia: jamais poderia deter as escolhas dos filhos quando o futuro chegasse.

    No salão de pedra, o mago postou-se sobre uma grande salva de bronze. Despejou nela uma seiva inflamável e usou uma pederneira para acendê-la. Abriu um baú feito de ébano, tirando dele o pergaminho que Reueliuel havia lhe dado. Sem pensar duas vezes, jogou-o no fogo, virou-se de costas e saiu do salão de pedra em busca de alguma solução para o futuro dos príncipes.
    Todavia, antes que o pergaminho queimasse por completo, as runas borradas e ilegíveis foram reveladas pela chama e o mago perdera para sempre a oportunidade de desvendar alguns mistérios:

    “...caso o poema de Odin seja declamado de modo errado, inevitavelmente a porta do Mundo Sombrio se abrirá.
    Não entre! Será o fim de tudo. Terrível punição e morte espera os que cometerem tal erro. Um feitiço cairá sobre todos!
    A porta se fechará depressa ao amanhecer. Mas se o poema for cantado, por três dias ela estará aberta, sob a luz de uma lua minguante. E não esqueça. Somente a melodia espantará os males. Então, cante o poema de Odin!
    Boa sorte aos que buscam tesouros perdidos e aos que almejam a cura de feitiços execráveis. Tal bruxaria pode ser desfeita com um simples cálice, a quem muitos chamam de o Santo Graal.  
    Sejam sábios e embolsarão bênçãos. Sejam descuidados e receberão terríveis maldições.

Zartomis Lactatus, o Ermitão.”


[1] Tinta usada na Idade Média, feita de vinagre e nódulos de carvalho.